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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Hamilton, o Homem nu



Self-portraits by Vincent van Gogh


Hamilton. Pronunciou fortemente seu nome, de forma a encontrar no significado de cada letra a marca do seu destino errante. Pareciam-lhes incrustadas na força dos seus pés e no movimento harmônico de suas mãos. Tinha uma espécie confusa de convicção na liberdade das palavras, assim criara seu mundo e revelara sua história pelos gestos ternos e amistosos.

Contou algo sobre suas viagens por infindáveis lugares do mundo e do seu retorno brusco - o que lhe decepcionara, e ao mesmo tempo lhe sustentava a condição de morador de rua, em seu universo de festins diabólicos e sagrados. Estava cabisbaixo, buscando no íntimo uma voz que se erguia como uma estátua de marfim contra os raios de sol. Para ele, as experiências humanas assemelhavam-se ao orgulho dos césares antigos em suas guerras e conquistas, às suas taças transbordantes de vinho ao cair da noite, ao embelezar do luar que cai diante dos homens; eis tudo o que representava sua vida.  Ele tinha experiências que dariam o romance do século, que se misturavam aos lábios trêmulos e aos olhos brilhantes, como o ébano que se dilui no olhar do homem errante.

A devoção que lhe pertencia era perturbadora, assim como seus olhos redondos, pretos e brilhantes, ao confidenciar que em suas mãos caíra-lhe uma fortuna. As formas traduzem muitas vezes os desejos da alma, pensara ininterruptamente.

Hamilton parecia não se intimidar diante do mundo e das classes sociais mais altas, via-se que comia ou bebia nas mesas mais fartas, diante de cortes bestializadas pelas aparências. Seu conflito social era menor que a agudeza do seu espírito. A situação marginal e clandestina em que vivia era o que lhe transmitia a essência das noites em que perambulava sozinho, absorvido em abstrações que sua alma não atrevia a conter.

Vinha perambulando de forma dramática, fazendo uma dança em que seus membros se retorciam pelo peso de alguns objetos doados ou encontrados nas ruas que trazia pendurados sobre seus ombros já cansados pelas intempéries diárias. Sua idade já lhe mostrava o enrugamento das mãos e do rosto suado. Trazia um semblante cansado e marcas de sujeira incrustadas na pele.

Fez um gesto de reverência por algum dinheiro que lhe fora dado e balbuciou palavras que enobrecem a alma humana, ternas, sutis, pronunciadas com entusiasmo de quem deseja um mundo melhor ou vários mundos para conquistar em suas andanças boêmias.

Sua voz estremecia, era inconfundível para quem o visse ou travasse algum diálogo com aquele ser que se dizia H-A-M-I-L-T-O-N - bem pronunciado, a ponto de suas roupas gastas ganharem um colorido e retirasse do invólucro toda a feiúra que lhe dava formas. Supunha que o conhecimento das ruas compunha sua personalidade de notas harmoniosas, complexas, ambíguas.

Nua. Sua alma expressava a lascívia do Homem Nu. Permanecia como outrora, sem compromissos, apenas povoavam-lhe à mente aspirações que tomavam conta do seu corpo magro e gélido pela brisa noturna que o acompanhava entre tragos e porres pelas esquinas das ruas que não tinham fim.

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